quinta-feira, 28 de novembro de 2013

caty caty caty


e o que eu não sei mais



quando foi que fiz essa colagem? a foto é de 2004, devem ter sido os últimos meses em que vivi nesse quarto. os cartões vinham de fontes diversas, misturas de postais, cortes de revistas, postais que vinham de viagens minhas com meus pais, e lembro que eu via toda oferta das lojas de museu e demorei a entender que aquelas coisas tinha funções, que elas não estavam ali só expostas como as do resto daquele edifício, que não era só a mesma coisa, só que em algumas salas o que se devia fazer era olhar e não tocar, e nos outros tipos de sala era preciso desejar, pegar, ter até o fim de comprar. certas coisas triviais não são evidentes, ainda mais se você cresce e vive meio alheia, o que é um profundo modo de estar presente. não sei se profundo, ou se aquático. enfins, os postais. 
os beatles ali em cima, o adesivo da campanha do lula, a billie holiday,  o lacan, o wilde, o che, o james dean, oxum, o bandido da luz vermelha, a marylin do cartão que minha irmã me deu junto com o primeiro sutiã que ganhei, a cruz vermelha ao canto era uma propaganda da igreja universal que eu ganhei na consolação e morri de rir, alguma iconoclastia também em maria dando palmadas no menino jesus, um pássaro sozinho voando, lirismo, umas palavras, entre elas: poemas.
vi outras fotos desse quarto e me lembrei que eu tentava estudar latim. e eu não tinha um quarto de alguém que fosse conseguir.
depois comecei a pasta seguinte de fotos e vi que foram as últimas fotos que tirei nesse quarto, provavelmente porque já o estava deixando pra trás. e confiei em poder confiar em alguém que dez anos atrás tomava esse cuidado já, de fotografar também os lugares para lembrar.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

de mal bem dizer

5.

Saberem-se errados, turvos, iludidos, desmascarados
não faz de vocês pessoas melhores ou mais reais.
A infelicidade, a tormenta, o vício, as fezes
não fazem de vocês pessoas melhores ou mais reais.
As desculpas, as explicações, quaisquer intenções
não fazem de vocês pessoas. Fazem de vocês, vocês
estarem errados, turvos, iludidos, desmascarados
infelizes, atormentados, viciados, cagões,
desculpados, explicados, intencionais,
vivos. E não sozinhos.
Mas quem não sabe de nada disso
Mas quem sabendo de tudo isso
confunde-se ao ponto de se achar
achado, melhor e vivo
está sozinho. E, bem,
nem os mortos
estão sozinhos.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

miu


segunda dentição

hoje eu estava carregando um livro de 700 páginas na chuva
eu vinha abraçada no livro que eu ganhei
com um guarda chuva aberto
uns dois quilometros
eu abraçada no livro ainda embalado
meu pulso controlando a cãibra
por conta do chapéu de chuva
daí meio quarteirão de casa
eu enfiei o pé direito num laço de um resto
de um resto de laço de fechar caixa
e aquilo deu um bambolê num pé
noutro pé aquela circularidade
presa. caí
me es pa ti fei
a perna esquerda atrevessou uns metros de água
e o livro andou uns poucos centímetros
de tão grande que ele é
depois pensei que eu podia ter quebrado um pulso
eu podia ter quebrado um poste
mas não quebrei não.
vai ser numa cárie não na bacia
quebrada que a maturidade
vai cair em mim
dessa vez.

patrícia me deu

CONTROLO PARENTAL

Não leias horácios, meu filho, lê horários:
são mais exactos. Abre as cartas marinhas
antes que seja tarde demais. Alerta, e não cantes.
Virá o dia em que eles pregarão listas
na porta outra vez e marcarão com sinais no peito
todos os que dizem não. Aprende a passar despercebido,
aprende mais do que eu aprendi: a mudar
de residência, de passaporte, de cara. Torna-te
erudito nas pequenas traições e nas escapatórias
sujas do dia a dia. As encíclicas
são boas para atear o fogo,
manifestos: embrulhar a manteiga e o sal
para aqueles que não se podem defender a si mesmos. São
precisas raiva e paciência
para soprar nos pulmões do poder
a poeira letal
finalmente moída por aqueles que aprenderam muito
e são exactos, por ti.

- Hans Magnus Enzensberger
(tradução de Américo António Lindeza Diogo)

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

o que o flexível ensina para o que não se dobra

havia, no canto da sala, um sujeito que era a própria violência, barulhento e desperdiçado nos seus gestos. na sala pairava um clima que desejava que o violento se calasse, que parasse, que respeitasse, que se tocasse, e demorou demorou. então um homem se levantou e foi até ele. e enquanto os outros esperavam que chegasse a polícia, a escola, a mãe, o pai, que viesse o não, o homem chamou o violento pelo seu nome três vezes, até que ele respondeu, e o homem então lhe disse: "você deve descansar". só então eu percebi que desejava que a violência acabasse com violência. e não. o um homem sabe como são as coisas. presto minhas homenagens.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

tempo

fui procurar um poema sobre são paulo que escrevi em 1999 e é dos primeiros que tenho memória de ter escrito e ainda lembrar dele; afinal encontrei um arquivo com 25 páginas de poemas escritos antes de 2001. impressionante já me ver lá naquela voz, ler que é a mesma voz, mas eu queria o quê? que a voz fosse outra? é que a vida muda tanto, tanto. e eu me exercitava mais nas ideias dentro dos poemas do que hoje, por exemplo escrevendo poemas de estrutura formal similar, em que um defendia num o frio, no outro o calor. ou em um a noite, no outro o dia. 
mas era ainda uma ligação moral entre essas coisas. carol falou que o fellini falou que associar de imediato mal e escuro, bem e luz é uma moral. carol é um gênio, federico de capricórnio, daí já viu: grudou-lembrei.
hoje fui procurar o esboço de um poema sobre são paulo, que escrevi dois meses atrás no meu diário, mas quem disse que eu encontrei o diário? deixa que eu te diga, tive que abrir os mais ou menos 20 cadernos dos últimos 4 anos, e de todos perceber que não eram o que eu procurava. repentinamente, agora penso que será a contribuição pra gratuita número 2, a minha. e que como tudo, terá de ser construído gradualmente, assim portanto não o encontrei. mas achei o começo do poema que eu tinha escrito ontem, só que num caderno de 2 anos atrás. pra além de ter um novo poema reitegrando partes de uma mesma sensação sobre a NOITE, encontrei no começo de um caderno de 2011 essa pérola:
"vocês não acham que sorte haverá? o meu avô foi o primeiro a abrir os matos? ele conhecia as ervas da floresta, da selva, as ervas do mato mesmo. 
(Portugal está me levando aos meus avós?)
deixa a mandíbula solta que chega até o vovô num espeto. agora que notei que vou fazer um caderno editado dos meus diários"

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só no meio de 2013 é que comecei o arquivo "a história do meu avô".

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saturno é tão literal: estrutura & nem pense em atravancar os meus ossos, que eles estão a se deslocar de lugar. preciso voltar e ver não aqueles dois quartos vazios, mas aqueles quartos cheios não de ossos. cheios de ternuras, entendimentos. a ternura que é o entendimento. 
o nome do arquivo da minha adolescência, do livro que eu pensava reunir na altura é "tentativas em um acaso", destilei do acaso para o destino e me vi mais fidedigna, por enquanto, no agora.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

da nova vida

não se abandone. se entregue.

sábado, 9 de novembro de 2013


a casa dos nietzscheanos

Voltar a estudar, não sei
mais compor meus poemas.
Que alegria! Como quem viaja
pela estrada começar a fumar
seu próprio dom e ritmo.

Não havia superfície que não fosse
estilhaçada no caleidoscópio
e o olho da imagem continua
sendo o que se pode ver:

ramagens, dicionários, rachaduras
no concreto existindo deus!
a imaginação! Como gostaria
de poder ver o poder ver.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

só serve pra o que eu quiser

embora hoje de manhã
eu não tenha ideia
tudo certo como dois
em uníssono vibram

o afeto são duas gotas pingando
num balde velho e aquele som
que calmaria é dormir

numa carne
toda vermelha
a pedra que ontem ganhei
hoje já perdi

daqui pra frente vou tratar assim
o que me acontece, de repente
os bolsos se esvaziam
a gente está livre mesmo
cheios de malas por carregar

cheios de malas por carregar
feito aquele poema mais longo
do qual gosto tanto
que nunca pude acabar

balela. balela que esse poema não existe.
é o eco entre dois vales
o que existe e a gente pode pensar em.


sábado, 2 de novembro de 2013

um blues furioso, uma flor


É ter a mais pura razão o sentimento que alucina. Estar soldado em si mesmo. Houve uma vez que uma tia avó minha estava para falecer. Fui visitá-la na véspera da morte no hospital Albert Einstein. Ela estava absolutamente lá do outro lado, já. Toda entubada e roxa, a boca enormemente aberta, era só aparelhos que do lado piscavam. Quis vê-la não porque algum sentimento especial me ligasse a ela (embora gostasse dela, não era um elo vital ao ponto de querer estar ao seu lado na hora em que o vital morresse para continuar vivo em mim. E continuou) mas porque estava numa dessas ondas de “sou escritora”, “a morte nos é vedada”, “nunca vi ninguém morrer”. Jovem, tinha me aparecido um sonho de identificação profissional. É claro que quando entrei na sala da UTI senti uma esmagada. Ingenuidade foi pouco, talvez puerilidade ou falta de senso da experiência, dos ecos dela em nós. Encontrei: o céu da boca com um tubo enfiado por dentro e já roxo, o céu. De dentro vinha um ronco, era o próprio corredor do Hades que urgia. Deve ter sido terça-feira. Quarta-feira velório. Quinta feira enterro. Isto no começo de 2008.

Eu havia visto ou ouvido a morte, sei não sei, escancarada na boca da minha tia avó, o rugido do chamado. Deve ser o som da galáxia quando faz. Foi um tapa na orelha da menina que queria ver de perto a ausência, a que nos é vedada. Mas quando fui no sábado ao sítio não me sentia triste. Lembro-me que sentei nas escadinhas de cimento de fora, que dão pra mata. Mas não importa. Porque de olhos fechados sou tubo, eu virei um rio. Pensava na altura “estou sempre no fundo de mim mesma”, ou como diz Ana Cristina César “estou muito compenetrada no meu pânico/ cá de dentro/ tomando medidas preventivas”. Eu estava no subterrâneo de mim mesma, porque não me ensinaram a me revoltar. Isto é coisa que temos que aprender sozinhas, Ana. E para fora. Mas o subterrâneo era noite, brotava. Eu estava na corredeira do subterrâneo e quando abria os olhos a areia do chão estava desenhada em padrões astecas, ou maias. Regulares, retangulares, labirintos, círculos. De olhos fechados era tudo dourado. Eu chorava. E chorava. Enquanto do meu corpo subiam capins, agitados nos cílios. Meu ventre fertile: o choro é o que devolve à terra o sal da terra, o chão. E nos leva onde não podemos com palavra, gesto intencional ou saída, chegar. Comecei a cantar um poema, verso a verso, onde cada palavra chegava já na última. Mas sabia que não poderia me levantar pra escrever. Era preciso lembrar dele. Memória sempre me sobrou. Eu era um rio, e os rios só se levantam para se ausentarem em nuvens. O verso final foi retirado em todas as publicações e era “E o caminho é dourado”. Retirado por sugestão de um professor que também me deu a dica de desistir dos romances. Verso escrito porque no fim de tudo chegou Osíris, ou alguma divindade muito clara e com dois tubos no lugar de cornos na testa, um capricórnio ceifador do trigo, todo dourado, pranteou feito lançasse com a mão fechada que se abre, purpurina que se jogasse, em tudo o que eu tinha passado — sementes de dourado. Antes de tudo, foi isto:


Eu sou o rio dos mortos
dos meus parentes mortos
e os meus mortos são o mundo inteiro

eu sou o rio dos mortos
nasci da sede pelo dó das lágrimas
quando mortos todos os pensamentos

eu sou o rio dos mortos
me criei no pântano das palavras
dos restos tudo trago

eu sou o rio dos mortos
minha carne é das nuvens
se fujo só dou em mim

eu sou o rio dos mortos
e o meu choro o que devolve à terra
o chão do sal da terra o chão

eu sou o rio dos mortos
minha margem de árvores
dos astecas que me sangraram

eu sou o rio dos mortos
da terra não passo
e ninguém me ultrapassa sem desvão.

No dia seguinte resgatei o poema do meu esquecimento. Entorpecida, eu e minha máquina de escrever. Estava sobre a mesa um vaso com belas flores e elas alimentavam minha vontade de ter o poema fora do que eu tinha visto e só a dificuldade do ritmo da valentine poderia decalcar. Foi o segundo poema do "cantos de estima" que escrevi.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

o bom samba




Intercedei por mim, bosques da velha terra. Teus homens, alguns entre meus antepassados, mataram seus ursos e lobos, curtiram suas peles para cobrirem os corpos, até confundirem os próprios ossos com os da violência de um animal e assim nasceu a civilização. Não os culpo, provavelmente com frio, provavelmente com fome, provavelmente pela vida eu faria até pior. Nada interessa como a vida interessa. E, portanto, tuas vidas não se extinguiram, bosques. É por isso, que para tudo que vou contar preciso da sua persistência. Intercedei por mim, árvores e pântanos, umidade que me cansa, silenciosa mata de poucos insetos, gravetos que estalam, ajudem-me a perceber a ligação entre as coisas. Humildemente vos peço que intercedei. Ensinem-me também a doçura do que só está. E oxalá com a vossa presença poderei entrar na história que quero contar.

 

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